Reproduzido da edição de nº 541 (2ª quinzena de julho de 2013) do Jornal Pessoal.
O lado pessoal do jornalista na perspectiva feminina
Minha ideia inicial de fazer desta edição uma genuína edição de férias de julho frustrou-se. A conjuntura não permitiu. Mas reservei este espaço para uma matéria mais apropriada à saison. São as respostas que dei a questionário formulado por jornalistas que constituem a base do blog Somos Todos Lúcio Flávio Pinto, espaço precioso para a defesa do meu jornalismo e do jornalismo independente em geral. Espero que os leitores dividam comigo o prazer de atender as abordagens femininas, que constituem uma perspectiva muito especial das questões.
SÍLVIA SALES
Que paixão te diverte? (Não vale citar família, trabalho, jornalismo, Amazônia, tá?)
Coração à parte, em primeiro lugar, ler. Um dos raros objetos que me prendem é o livro, feito de matéria e espírito como nenhum outro. Minha ligação ao livro é intrauterina. Mamãe lia “Quo Vadis”, do Henryk Sienkiewicz, quando sentiu meus empurrões lá dentro (já saí para o mundo com fome, disse ela). Como estava em cena o romano Lucius Flavius, levei esse nome. A outra paixão é a música, já em escala menor. Algumas paixões ficaram pelo caminho, como a prática de esportes (sobreviveu a natação) e o cinema. Mas ainda adoro andar. Não como atleta, mas como voyeur. Este é outro prazer sensorial e sensual: o do olhar. Só superado por outra paixão superior: pensar. Adoro ver e meditar. As caminhadas e a natação são a melhor maneira de praticar ambas paixões.
Tu te consideras um homem vaidoso? Onde está manifestada essa vaidade? Desenvolve.
Sinceramente, sou vaidoso numa dosagem normal – e decrescente. Já me importei com roupa. Há muito tempo não me importo mais. E com aparência, da qual, com o aval dos mais de 60 anos, já não preciso me preocupar. O excesso de vaidade tira a virilidade do homem. Não em sentido estrito, ou restrito. Mas num sentido muito amplo. A vaidade é um dom natural na mulher, que a complementa e sublima. Já ao homem imbeciliza. Tira-lhe a autocrítica e até, nos casos extremos, a capacidade de raciocinar. Vi homens inteligentes se apagarem ao menor elogio, mesmo o descaradamente utilitário – ou falso.
Paixão é a filha gostosa da insensatez?
Quanto mais insensata, mais gostosa fica. E vice-versa. Depois da fase em que os erros são aceitáveis e a margem de erro admite a insensatez, melhor mantê-la à distância. O homem maduro é aquele que alcança o maior grau possível de autonomia, de comando da sua vida.
Sobre os movimentos feministas no Brasil, qual a tua avaliação?
Inteiramente a favor. Recordo uma charge do Angeli do personagem machista, o Bibelô. Ele vê uma mulher linda na praia e faz a abordagem, ao estilo. Ela reage com um “não gosto de homem”. Ele completa: “Nem eu. Primeiro ponto em comum”. A mulher é a suprema criação divina. Mesmo quando faz tudo para negar isso.
Algum arrependimento?
Muitos. Tantos que não caberiam neste espaço. Mas quando a gente tem consciência do erro, arrepender-se é a melhor maneira de aprender e se corrigir. Por isso me exponho à correção de todos aqueles que percebem e apontam meus erros. Ainda espero ser um pouco melhor do que sou. Se não conseguir, autorizo que coloquem na minha lápide: ele tentou.
RAYZA SARMENTO
Qual a sua avaliação dos cursos de jornalismo no Estado do Pará, a partir de sua experiência como docente? O que deve ser aprimorado para que os profissionais em formação consigam refletir e escrever com mais propriedade sobre a Amazônia?
Só escreve bem quem lê. Lê em geral e de tudo. Mas lê, em especial, literatura. Para um jornalista, especificamente, mais importante até do que ler os clássicos, indispensáveis por qualquer demanda, é ler textos com narrativas e descrições. Bons thrillers e literatura B, que refletem o cotidiano, são essenciais. Assim como ler as publicações da imprensa periódica. E se exercitar na criação de textos libertos das amarras dos manuais.
O problema é que tanto o jornalista já formado quanto o estudante de jornalismo leem pouco – e costumam ler mal. O princípio norteador da leitura deve ser o prazer, o desfrute, o deleite mais do que a preocupação – que costuma ser obsessiva – de aprender logo. O sujeito lê e ficha ao mesmo tempo. Assim, não pode haver leitura lúdica, passo necessário para a lucidez. Com prazer, o futuro jornalista desenvolve sua curiosidade e opta por seus métodos de investigação. O mundo passa a ser o seu universo. E ele, um auditor do universo.
Além de uma mudança profunda nos currículos, é preciso separar o curso do jornalismo do curso de comunicação. Autônomos, ambos renderiam mais: para o aluno e para a sociedade.
SOCORRO VELOSO
Nos momentos em que você não está dedicado ao Jornal Pessoal e aos processos judiciais (imagino que são poucos), o que mais gosta de fazer?
Ler, ouvir música, andar pela cidade, conversar com amigos, visitar livrarias.
Tive a felicidade de conhecer sua mãe, dona Iraci, uma senhora simpática, que ajudava a localizar as edições antigas do JP, quando alguém – como foi o meu caso – estava precisando. Seu pai, Elias, teve uma história de vida muito interessante, e pontuada por momentos dramáticos. Qual o legado de seus pais para a sua formação pessoal e profissional?
Mamãe foi o esteio de todos os seus sete filhos. Uma pessoa de rara bondade, generosidade e humildade. Só com o tempo fomos percebendo a profundidade da influência que ela exerceu sobre cada um de nós. Como no caso da leitura. Esse hábito sempre foi associado ao papai, que formou sua biblioteca e lia muito. Antes de aprender a ler eu já avançava sobre os livros dele. Um, em particular, foi importante: o belo dicionário Lello Universal. As ilustrações me atraíram. Um dia, estava com aquele volume, grande e pesado, sobre as perninhas.
Mamãe me disse depois que sentou ao meu lado e passou a ler os primeiros verbetes. Quando chegou ao ábaco, pedi para repetir. Fiquei maravilhado com o aparelho primitivo de calcular dos chineses, que perdurou como a forma mais rápida de fazer conta até o surgimento do primeiro computador, nos Estados Unidos, em 1946.
Dou esse exemplo sobre a atenção de uma pessoa simples sobre as coisas do espírito ao alcance das suas crias. Ela inspirava e orientava como atos naturais, talvez para se manter à sombra do chefe da família numa época ainda patriarcal. Deve ter avançado sobre a biblioteca do papai da mesma maneira que eu. Mas eu pude me expandir, ela não. Aí entra a forte influência do meu pai, tanto em sentido positivo quanto negativo.
Papai foi uma pessoa brilhante, que conseguiu desperdiçar todos os talentos que a vida lhe concedeu. Dilapidou o patrimônio – material e espiritual – que ele próprio construiu. Consegui ver seu lado bom e seu lado ruim. Ele me apresentou bem cedo ao mundo. Eu adorava sair com ele de jipe e percorrer o interior, onde ele fazia campanha política. Ou participar das rodas de conversa com tanta e tão diferenciada gente. Foi ele que plantou a semente do jornalismo nos filhos. Foi uma personalidade fascinante.
Nas páginas do JP, você costuma refletir sobre as mazelas de Belém. O que de melhor e o que de pior a cidade representa hoje, em sua opinião?
A Belém do quadrilátero das mangueiras é a face melhor da cidade. A Belém da periferia é a sua contrafação. São partes distintas e paradoxais de uma mesma cidade. Ao crescerem sem se tocaram, criam um cenário favorável ao conflito, à violência, à dissipação do seu potencial. Belém está se tornando, por isso, uma cidade monstruosa. Já foi bom viver aqui.
Já pensou em doar seu rico acervo de livros, documentos, jornais e revistas, como fez o José Mindlin, por exemplo?
As condições que o Mindlin impôs à doação dificilmente serão repetidas no Brasil. Ele era um homem rico, influente e respeitado. Concebeu uma forma de destinação ao seu acervo que obrigou o destinatário da doação a investir – e muito – na criação de uma estrutura para abrigar os livros e documentos, no acatamento de uma entidade autônoma e eficiente para administrar esse patrimônio e outras condições que previnem a coleção Mindlin das mazelas comuns em órgãos públicos.
Certamente eu não conseguiria impor essas condições. Aliás, nem penso no assunto. Tenho com a minha biblioteca a relação que Eidorfe Moreira teve com a dele: é uma biblioteca pessoal. Quando morrer, provavelmente perderei o comando que exerço sobre ela. Por ser um espelho da minha vida, é uma biblioteca estritamente pessoal.
Você é o nome mais conhecido, celebrado e estudado da imprensa amazônica. É exemplo de coragem, integridade e profissionalismo para gerações de jornalistas como a minha, que entrou na Universidade nos anos 80. Como espera ser lembrado pelas futuras gerações?
Como o jornalista que perguntava sempre e não descansava enquanto não encontrasse as respostas. O único mérito que um determinado jornalista pode ter é saber fazer as perguntas certas no momento certo. E ser capaz de guiar sua curiosidade conforme o interesse público.
Agora, cá entre nós: tudo que você disse é areia demais para o meu caminhãozinho.
ROSE SILVEIRA
Quando você cita autores que foram importantes para a sua formação, a lista é sempre masculina. E as autoras? Quais fizeram ou fazem a sua cabeça?
Depois que fiz a lista, à base do vapt-vupt, percebi isso que você agora registra. Listas são sempre isso: uma lembrança de momento. São muitas as mulheres na minha vida, literariamente falando. A começar pela mais influente delas, a poeta americana Elizabeth Bishop, uma das minhas leituras de cabeceira. As cartas dela são fonte de aprendizado interminável. A poesia é única. Ela passou momentos em Santarém e escreveu a melhor poesia inspirada na cidade. Há Clarice Lispector, Cecília Meireles, Tereza Cesário Alvim, Adalgisa Nery, Mary McCarthy, Simone de Beauvoir, Simone Weil, Hannah Arendt, Anna Akhmátova. Há mais. Para depois.
Se a sua vida virasse um filme, que episódios não poderiam faltar?
Gostaria que um dia alguém me desse essa resposta objetivamente. Subjetivamente, as cenas decisivas sempre me vêm à memória. Não são poucas. Gostaria de lembrar apenas duas. Uma, foi a leitura do AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968, na redação de “A Província do Pará”. Eu estava editando o jornal naquele dia. Peguei o texto do telegrama, fui para o bar do Chico, pedi um café e um bolo e fiquei a ler. Li e reli. Chocado, pedi mais um café (tomava uns 30 por dia nessa época) e fiquei a meditar. Eu tinha sido um participante do ano que não terminaria, me dividindo entre a universidade, com sua ocupação, e o jornal. Concluí que não havia mais lugar para mim depois do AI-5 em Belém do Pará. No dia 1º de janeiro de 1969 viajei para São Paulo. Achava que ali estaria o olho do furacão. Achei certo.
A outra cena foi em São Paulo, dois anos depois. Eu entrevistava o engenheiro e empresário Eduardo Celestino Ribeiro, paulista poderoso e influente, na antiga sede da Federação das Indústrias, no viaduto Maria Paula. Além de ser dono da Cetenco, Celestino tinha fazenda de gado no sul do Pará. E me falava sobre seus planos para a Amazônia, que consideravam indispensável derrubar a floresta para a formação de pastagem. Enquanto ele falava, meu olhar passou por ele, atravessou a janela do escritório e foi bem longe. Celestino era refinado, inteligente e quase culto. Se ele dizia aquelas coisas, o que não fariam os bugres bandeirantes paulistas do século XX?
Foi ali que decidi deixar a carreira acadêmica, como aluno de mestrado em ciência política de Oliveiros Ferreira e voltar para a minha terra. Minha Amazônia não era a mesma de Celestino. A dele, para se estabelecer, implicava a destruição da Amazônia que estava na minha raiz, na minha alma. Decidi entrar de vez no combate.
Falando em cinema, que filmes foram fundamentais na sua vida?
“Trinta anos esta noite”, “Quem tem medo de Virgínia Woolf”, “Os Indiferentes”, “Aquele que sabe viver”, “O silêncio”, “A velha dama indigna”, “Rio vermelho”, “Ivã, o terrível”, “Vidas secas”, “Deus e o diabo na terra do sol”, “O desprezo”, “Blow-up”, “Alexander Nevski”, “Paixão de Ana”, “Marcelino, pão e vinho”. E outros mais.
Se você pudesse eternizar um momento na sua vida, qual seria?
O nascimento do meu primeiro filho, a Juliana. É quando o ser humano tem a ilusão de ser eterno. Ilusão que se prolonga pelos outros filhos – quatro, no meu caso – e os netos – também quatro, por ora.